segunda-feira, 28 de abril de 2008

Conversa de Rua: A culpa é do pobre

Depois de um breve período de silêncio na nossa Conversa de Rua, eis que surge a mais nova crônica de João Paulo da Silva. Nesta, Jurandir, um auxiliar de serviço recebe uma visitante inesperada na hora do jantar: a inflação. Mais uma crônica brilhante do João Paulo, tratando com bastante humor a alta dos alimentos.

No áudio contamos com Giambatista Brito, como narrador; Ilson Junior, como Jurandir; Giovana Aleixo, como a esposa, e Caio Marques como um dos filhos do casal.

Dessa vez publicamos o áudio no serviço de compartilhamento gratuito eSnips. O lifelogger estranhamente não está tocando o áudio. É clicar no play e ouvir. Qualquer problema deixe o protesto nos comentários que a gente vê o que pode fazer.

Não deixe de visitar o blog As Crônicas do João.

A culpa é do pobre

Por João Paulo da Silva

É noite. Jurandir, auxiliar de serviços gerais, chega em casa depois de um dia de trabalho. Pretende jantar e ir dormir. Pois amanhã vai levantar cedo de novo para trabalhar. Já estão todos ao redor da mesa. A mulher, os dois filhos e o Jurandir. No centro, uma panela fumegante. Uma só.

- O que temos pra comer? – pergunta o marido.

Antes mesmo da resposta da mulher, vem o espanto do Jurandir ao destampar a panela.

- O quê?! Mas o que é isso? Arroz? Só arroz? Onde estão o feijão e carne?!

- A comida tá muito cara, Jurandir. Esse mês nem deu pra comprar tudo. O dinheiro foi embora rapidinho.

- Mas essa situação já tá ficando insuportável. Aonde é que nós vamos parar desse jeito, meu Deus?!

- E eu é que sei, Jurandir?! Tá tudo subindo de preço. É a carne, o feijão, o óleo, o leite. Uma loucura. A Maria mesmo, aquela da casa da frente, me contou hoje que os meninos dela ficam brincando de caça ao feijão no almoço. Tá difícil pra todo mundo, amor.

- Pra todo mundo não! Vê se tá essa pindaíba na casa do meu patrão. Coisa nenhuma! O sujeito não faz nada nessa vida, num bate um prego numa barra de sabão. Só sabe explorar os outros. Agora vê só a gente. Se mata de trabalhar pra não ter dinheiro nem pra comer direito. Aquele aumento miserável no salário mínimo que o Lula deu não serviu pra nada. Um absurdo!

Quando o Jurandir calou-se, ficou suspensa no ar aquela já conhecida sensação de que “não estamos sozinhos”. Havia mais alguém na mesa além da família. Uma visitante bastante ingrata. Sim, era ela. A inflação! Que desgraçadamente come melhor do que todos nós.

O rápido silêncio foi quebrado pela mulher.

- Tudo bem. Vamos tentar relaxar e comer. Filho, liga a televisão que já deve tá na hora do jornal.

Assim que o menino ligou o aparelho, Jurandir se engasgou com um punhado de arroz. A manchete do jornal dizia: “Brasil bate recorde na produção de alimentos.”.

- Recorde?! E pra onde diabos vai essa comida toda que não chega na mesa do povo?! – indignou-se Jurandir.

- Vai pra fora do país, pai. – disse um dos meninos – O Brasil vende quase tudo pro estrangeiro e fica com o resto.

- Quem foi que te disse isso, menino? – quis saber a mãe.

- A professora. Ela disse que é por isso que a comida tá tão cara. E falou também que a culpa é de uma tal de multinacional.

O Jurandir mal se recuperara da engasgada quando o jornal pôs no ar o Lula falando sobre a inflação dos alimentos. Isso tem uma razão: os pobres do mundo estão começando a comer mais.”.

Aí o jurandir nao se aguentou:

- Agora danou-se tudo de vez! Quer dizer que a culpa é nossa?! A gente não come direito porque os preços estão altos. E quando come os preços sobem mais?! Que que é isso, meu Deus?! Sei não, hein! Tem alguma coisa errada nessa história. Mas por via das dúvidas vamos fazer o seguinte: parem de comer! Ninguém come mais!

- Mas, Jurandir, os meninos estão com fome. Precisam comer!

- Nada disso! Se a gente comer mais desse arroz, o preço vai subir e aí não vamos poder comprar nem mesmo o arroz. Ninguém toca nesses pratos!

- Jurandir! – revoltou-se a mulher – Mas o que é isso?! Ficou doido?! Deixe os meninos comerem!

Estavam numa encruzilhada.

- Tá. Tudo bem. Mas só alguns grãos, hein!

Depois de algum tempo, a mulher se levantou pra ir até a cozinha. E de lá mesmo perguntou, suspirando:

- Ai, meu amor. Será que vamos voltar a comer carne de novo algum dia?

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