quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Seu Hélio

O camarada "Chicano", de Florianópolis (SC), conta a história do velho engraxate da cidade paradisíaca. Morador de um dos mais belos locais turíscos do Brasil, Seu Hélio foi sendo afastado de sua cidade para dar lugar aos turistas "bacanas". Uma situação cada vez mais comum em nosso país. Em Florianópolis, a beleza natural vem sendo privatizada. Foi o que aconteceu com o Costão do Santinho, uma praia maravilhosa que teve o acesso fechado para a construção de um resort. E só entra quem tiver muito dinheiro para pagar a estadia caríssima: na baixa temporada, um pacote de sete dias custa mais de R$2.700. Seu Hélio teria de engraxar muitos sapatos para apreciar o resort...


Seu Hélio

Com as mãos carcomidas pelo trabalho
Caminhar trôpego de velho
Lá vem Seu Hélio
Cantar sua canção
Épica em tom de lamento:
A parábola da vida moderna.
Hélio, astro-rei,
Produtor de toda luz e energia,
É tratado como se nada fosse
E todos os planetas dele
Só querem lhe beber a luz
E nada mais.


Conheci seu Hélio no Centro. Ele veio caminhando em curvas, sem aparente propósito ou direção. Quando percebi, ele já estava sentado ao meu lado. Ele pediu um cigarro e começamos a conversar. De início, confesso que não entendi nada que disse. Da sua boca sem dentes saia um som incompreensível, uma outra língua à qual eu não estava acostumado. Aos poucos, fui limpando meus ouvidos dos meus preconceitos e foi assim que comecei a entender o que aquele senhor de aparência desoladora falava.

Sorriso camarada no rosto, pele enrugada, bonezinho gasto empinado na testa, cabelo grisalho, chinelinho de dedo, aquele homem mostrou-me suas mãos calejadas. Veias grossas permeavam seus braços e suas unhas guardavam a graxa do ofício. “Há quarenta anos engraxo”, disse ele esfregando uma flanela imaginária no ar. “Naquele tempo era mió, todo mundo usava sapato, até as criança”.

“É pena, neinguém dá valor. Engraxo bem e é só. Cobro dois real, mais barato que os colega até. Moro longi, em Palhoça, e as passagem é dois e quarenta. Em dia bom, tiro quarenta até. Dá pra comer e comprar um cigarrinho”, diz sorrindo.

A história de Seu Hélio é simbólica, porque retrata o drama da classe trabalhadora. Em nossa sociedade, os trabalhadores ganham o suficiente pra recuperar as energias e só, nada mais. Seu Hélio é um nativo da ilha de Florianópolis, mas hoje mora longe e tem de passar várias horas no ônibus para chegar ao local de trabalho e também para retornar a sua casa. Quando lhe perguntei sobre isso, a resposta estava na ponta da língua: “Os alugué, né? Vem esses bacana de fora, lá de São Paulo e de otros lugar. Eles vêm pra cá pra passear e nóis é que pága”.

Atualmente, muitas localidades do litoral brasileiro passam por um fenômeno em que se transformam em verdadeiras “cidades-balneário”, ou seja, sua função passa a ser de vender suas belezas naturais e atrativos culturais, oferecendo uma infra-estrutura urbana desde aeroporto até... engraxates. Seu Hélio não tem dinheiro para pagar o aluguel cada vez mais caro, apesar de trabalhar de sol a sol e, assim, foi expulso para regiões cada vez mais longes do centro.

Apesar da exploração e por ser tratado como inferior pelos “bacanas” que vão engraxar, Seu Hélio não se deixa abater. “Dinheiro não traz felicidade. Eles só pensa nas coisa que tem e nas que ainda querem ter. Passo aperto, mas sô filiz”. Quando apertamos nossas mãos e lhe perguntei seu nome, Hélio, sorri e fiquei contemplando o velho indo embora. E comecei a cantar aquele velho samba: “A sorrir eu pretendo levar a vida, pois chorando eu vi a mocidade perdida. Fimda a tempestade, o sol nascerá”...

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