“A Negra, a Índia, a Mulher, a Cholita comunista”
O dia em que conheci a Mercedes Sosa...
Estas letras são um encontro com um pedaço do meu passado, com uma página da minha juventude, com a raiva, com o ódio que morde devagar, até sangrar os lábios, a dos punhos fechados contra a injustiça, a violência, contra as botas assassinas.
O dia em que conheci Mercedes Sosa.
Não foi em um teatro, foi no cenário da vida, como uma jovem do interior, igual a ela, a conheci na universidade, em uma universidade “ocupada” pelos estudantes, lutando contra os que queriam impor o que devíamos vestir, o que devíamos estudar, o que devíamos pensar.
Escutar sua voz, essa potente que começou a encher o lugar onde estávamos todos os que se juntavam para se organizar. Escutar sua voz, em apoio a nossas reivindicações justas de “liberdade”. Foi como se dissesse em seu canto... tudo, tudo que sentíamos em nossas entranhas, por nossos presos torturados, por nossos perseguidos, por os que queriam acabar com a palavra injustiça.
E ali, a Negra, a índia, a Mulher, a cholita tucamana, com sua bagualita, com seu zambita, com seu bumbo, e seu poncho foi envolvendo a todos. A todos que viveram e foram vanguarda no meu país, contra a violência, a dor e a imposição.
E logo em novo encontro na porta de uma fábrica tomada por operários, mais tarde em uma praça pública em solidariedade aos que lutavam defendendo seu direito a vida, a uma vida digna, porque como diz Eladia Vazquez, “viver não é existir, mas sim honrar a vida”. E ali estava com sua Voz, seu bumbo e seu poncho envolvendo a todos, a uma juventude que aprendeu com os golpes que palavra piedade não existia.
Mais tarde nos encontramos novamente com sua Voz, seu bumbo, seu poncho, desta vez foi na província de Córdoba, e sua Voz junta às reivindicações sindicais dos trabalhadores telefônicos. E ai soube que sempre tivestes um carinho especial pelos lutadores de Córdoba, os do “Cordobazo” e pelas mulheres que enfrentaram a ditadura em Córdoba. Talvez por isso ela comprasse uma casa nos morros, talvez por isso sua casa fosse um encontro de “todos”, todos os que haviam vivido trinta mil desencontros.
Ela foi parte dos trovadores que com seu canto relatavam a realidade do meu país, do norte do meu país, porque a idéia era o canto, e seu canto era um compromisso com nossa gente humilde, com o norte camponês, de terra seca e engenhos açucareiros, onde as guitarras se cutian com o sangue dos trabalhadores. O norte provinciano, o norte operário.
E como provinciana igual a ela fui parte dos “cabecitas negras” que rompemos as fronteiras da América Latina, assim aprendemos que os humildes não têm fronteiras.
Com sua voz fomos testemunhas de que América é uma, a dos pés descalços.
Escrevo isto e compartilho a dor do meu povo por sua partida. Porque se vai a Voz, a mulher que desde jovem acompanhou com seu canto nossas idéias, nossos sonhos, nossas esperanças, a de libertar a nossa terra do jugo explorador.
Sua Voz é a das mulheres quando se levantaram e começaram a lutar contra a opressão, que é o mesmo que lutar contra as correntes deste sistema explorador.
Sua Voz, a de uma juventude que foi lavrando, forjando sua vida entre a miséria de um país, um continente, empurrando a recolonização.
Negra, você foi, mas fica. Fica no nosso compromisso com nossa gente, de mudar esta realidade por um mundo comunista.
Foi, mas fica nas nossas lutas de hoje e amanhã.
Na greve dos bancários brasileiros.
Na rebeldia dos hondurenhos contra as botas da nova ditadura Americana.
Fica com os que resistiram contra a ofensiva imperialista-frente populista no Haiti.
Fica no Tsunami que está quebrando em pedaços o governo Kirchner de nosso país. A grande greve por melhores condições de trabalho e higiene, contra a gripe A1, a greve que hoje sacode a Argentina contra a multinacional ianque Kraft-Terrabusi.
“Negra”, Índia, Mulher, “Cholita comunista”
Foi, mas fica em todos os que desde muito jovens despertamos junto a tua voz contra as injustiças e aprendemos que “de joelhos o inimigo parece maior”.
Por isto, esta não é uma despedida, é um ‘Até a Vitória’ de cada luta operária, estudantil ou camponesa. Como nas últimas letras que com sua Voz deixaste “os únicos vencidos, coração, são os que não lutam”.
Por isso dou “Gracias a la Vida”, que permitiu conhecer-te.