sábado, 6 de junho de 2009

Robert Fisk e o discurso de Obama no Cairo

Robert Fisk, correspondente no Oriente Médio do The Independent, não deixou passar em brancas nuvens o discurso de Obama no Egito. Logo no dia 02/06, Fisk disparou o que maioria dos árabes já sabia: o discurso de Obama fará pouca diferença. Na última sexta, dia 05, o jornalista escreveu mais um artigo: Palavras para curar feridas de século.

Palavras, para curar feridas de século.

Robert Fisk

Pregador, historiador, economista, moralista, professor de escola primária, crítico, guerreiro, iman, imperador. Às vezes, até esquecia-se que Barack Obama é presidente dos EUA.

Conseguirá sua fala ante público cuidadosamente selecionado na Universidade do Cairo, fazer "reimaginar o mundo" e curar as feridas de séculos entre muçulmanos e cristãos? Resolverá a tragédia árabe-israelense, depois de mais de 60 anos? Se bastarem palavras, talvez...

Foi discurso bem construído, o que ouvimos de Obama ontem, ao mesmo tempo gentil e duro, do tipo que agrada qualquer público – e, de público, lá, só havia nós. Elogiou o Islam. Adorava o Islam. Admirava o Islam. Adorava o Cristianismo. E admira os EUA. Sabíamos que há sete milhões de muçulmanos nos EUA, que há mesquitas em todos os estados da União, que o Marrocos foi a primeira nação a reconhecer os EUA e que nosso dever é lutar contra os estereótipos antimuçulmanos, assim como é dever dos muçulmanos lutar contra os estereótipos anti-norte-americanos?

Boa parte da verdade, sim, foi dita, embora caramelizada para não ferir suscetibilidades em Israel. Negar os fatos do Holocausto de judeus é "sem fundamento, ignorante e semeia o ódio", disse ele, em frase obviamente dirigida ao Iran. E Israel merece segurança e "os palestinos devem desistir da violência..."

Os EUA exigem uma solução de dois Estados para o conflito Israel-Palestina. Disse aos israelenses que a colonização da Cisjordânia tem de parar. "Os EUA não aceitam a legitimidade da continuada construção de colônias israelenses."

Os palestinos sofreram muito sem pátria. "A situação do povo palestino é intolerável", disse Obama; e os EUA não darão as costas "às legítimas aspirações dos palestinos, de ter Estado próprio". Israel tem de dar "passos concretos" para que os palestinos progridam em suas vidas diárias, na trilha da paz. Israel tem de reconhecer o sofrimento dos palestinos e o direito de os palestinos existirem. UAU. Há mais de uma geração Israel não ouvia esse tipo de crítica de um presidente dos EUA. Soou como o fim do sonho sionista. George Bush existiu?

Infelizmente, sim, existiu. Às vezes, de fato, a fala de Obama soava como a Empresa de Reparos e Consertos Gerais de Bush, visitando o mundo muçulmano para varrer montanhas de candelabros partidos e carne dilacerada. Mas o presidente dos EUA – e isso foi surpreendente – admitiu os fracassos de seu país, a resposta exagerada ao 11/9, a criação de Guantânamo a qual, Obama outra vez nos fez lembrar, ele acaba de mandar fechar. Nada mau, Obama...

Chegamos ao Iran. Um Estado que queira ter armas nucleares é "caminho perigoso" para todos nós, especialmente para o Oriente Médio. Temos de impedir que comece qualquer corrida por armamento nuclear. Mas o Iran, como nação, deve ser tratada com dignidade. O mais extraordinário: Obama nos lembrou que os EUA trabalharam para derrubar o governo democraticamente eleito de Mossadeq no Iran dos anos 50s. Difícil superar "décadas de desconfiança".

E houve mais; democracia, direitos das mulheres, economia, um punhado de boas citações do Corão ("Quem mata um inocente, é como se matasse toda a humanidade".) Os governos devem respeitar "todo o seu povo" e também as minorias. Falou dos coptas cristãos do Egito; até os maronitas cristãos do Líbano apareceram por ali.

E quando Obama disse que alguns governos "quando chegam ao poder" tornam-se cruéis e suprimem os direitos alheios, a supostamente adestrada plateia irrompeu em aplausos ensurdecedores. Não surpreende que o governo egípcio tenha querido selecionar trechos do discurso de Obama, só os mais recomendáveis para o povo egípcio. A platéia estava claramente muito, muito infeliz com o regime de Estado policial de Hosni Mubarak. Fato é que Obama não pronunciou sequer uma vez o nome de Mubarak.

E sempre, e sempre, se ficava pensando: Obama ainda não mencionou o Iraque... E então, ele mencionou ("guerra escolhida... nossos soldados logo sairão de lá"). Mas ainda não falou do Afeganistão... e, então, ele falou do Afeganistão ("não queremos manter soldados no Afeganistão..."). Quando começou a falar sobre "uma coalizão de 46 países" – estatística muito duvidosa – começou a soar muito parecido com o predecessor. E aí, é claro, encontrou um problema inevitável. Como disse ontem Marwan Bishara, intelectual palestino, é muito fácil ficarmos "atordoados" ante presidentes. Foi uma performance atordoante. Mas quem leia o texto, verá que faltam coisas.

Nenhuma referência – durante ou depois a cordial escarificação do Iran – às cerca de 264 ogivas nucleares israelenses. Os palestinos ouviram reprimenda por atirarem foguetes contra crianças adormecidas e por explodir idosas em ônibus. Mas nenhuma referência à violência que Israel pratica em Gaza: só à persistente "crise humanitária em Gaza".

Nenhuma referência a Israel ter bombardeado civis no Líbano, nem às repetidas invasões de território libanês (17.500 mortos só na invasão de 1982). Obama disse aos muçulmanos que não vivam no passado, mas poupou os israelenses dessa recomendação. O Holocausto lá estava, no discurso; e Obama lembrou-se que hoje visitaria o campo de concentração de Buchenwald.

Para um homem que está mandando mais milhares de soldados norte-americanos para o Afeganistão – desastre certo ainda por acontecer, aos olhos de árabes e ocidentais – houve algo de bravata e presunção nesse ponto. Quando falou do muito que o ocidente deve ao Islam – a "luz do conhecimento" na Andaluzia, a álgebra, a bússola, a tolerância religiosa, foi como se acariciasse o gato antes de levá-lo ao veterinário. E o veterinário, claro, pregou aos muçulmanos sobre os perigos do extremismo, os "ciclos de desconfiança e discórdia" – apesar de os EUA e o Islam partilharem "princípios comuns" os quais, como ninguém sabe, são "justiça, progresso e a dignidade de todos os seres humanos".

Houve uma generosa omissão: em discurso de quase 6.000 palavras, não apareceu a palavra letal "terror". "Terror" ou "terrorismo" tem sido mais frequentes que vírgulas em todos os discursos do governo israelense e tornou-se parte da obscena gramática da era Bush.

Um cara inteligente esse Obama. Não chega a ser um Gettysburg. Não é exatamente um Churchill, mas não está mal. Sempre se pode, seja como for, lembrar observações de Churchill: "Palavras são fáceis e muitas; grandes feitos são difíceis e raros."

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