Então... a Al-Qaeda está “quase derrotada”, é? Vitórias arrasadoras contra Al-Qaeda. Essencialmente derrotada. “Bem feitas as contas, estamo-nos saindo muito bem”, diz o chefe da CIA, Michael Hayden, ao The Washington Post. “Al-Qaeda praticamente derrotada, em termos estratégicos, no Iraque. Al-Qaeda praticamente derrotada, em termos estratégicos, na Arábia Saudita. Em termos globais, duros golpes contra a Al-Qaeda – e aqui usarei a palavra ‘ideologicamente’ –, na medida que grande parte do mundo islâmico rejeita aquela forma de Islam”. OK. Ele que conte outra!
6 mil mortos no Afeganistão, dezenas de milhares de mortos no Iraque, um ataque de homem-bomba por dia na Mesopotâmia, o maior nível de suicídios entre os soldados norte-americanos – astutamente, a imprensa árabe deu igual destaque a esta matéria, ao lado das sandices de Hayden – e bases permanentes dos EUA no Iraque depois de 31 de dezembro. E estamos vencendo a guerra?
Há menos de dois anos, ouvimos as mesmas insanidades sobre a guerra, quando o general Peter Pace, o muito esquisito (e hoje felizmente já aposentado) chefe do Conselho do Estado-Maior dos EUA, disse da guerra dos EUA no Iraque que “não estamos vencendo, mas não estamos perdendo”. Ao que o secretário de Defesa de Bush, Robert Gates, acrescentou que concordava com Pace, ‘porque’ “não estamos vencendo, mas não estamos perdendo”.
James Baker, que acaba de apresentar seu próprio muito confuso relatório sobre o Iraque, declarou então – leitor, por favor não ria nem chore – “Acho que não se pode dizer que estamos perdendo. Pelo mesmo parâmetro, acho que não tenho certeza de que estamos vencendo.” Então, Bush em pessoa enunciou: “Não estamos vencendo. Não estamos perdendo. Lamento pelos iraquianos, mas, seja como for, nós estamos, mesmo, mesmo, vencendo." Ou, pelo menos, Al-Qaeda está “quase” – observem o “quase” – derrotada. É o que diz Mike Hayden.
Serei o único a achar esta conversa toda tão infantil, que me soa como conversa de doido? Enquanto houver injustiça no Oriente Médio, a Al-Qaeda vencerá. Enquanto mantivermos 22 vezes mais soldados ocidentais no mundo muçulmano do que houve no tempo das Cruzadas – este cálculo é bem preciso – estaremos combatendo os muçulmanos. O inferno, o desastre que é esta guerra, já se espalha para o Paquistão, o Afeganistão, Iraque, Gaza e inclui o Líbano. E estamos vencendo a guerra?
Sim, conseguimos comprar alguma sobrevida para nós no Iraque, pagando metade dos insurgentes para lutar por nós e assassinar seus primos da Al-Qaeda. Sim, continuamos aliados ao regime de degoladores e torturadores, da Arábia Saudita – sem problema, suponho, dado o entusiasmo que manifestamos pela técnica do "water-boarding", tortura por afogamento –, mas nada disto significa que Al-Qaeda esteja derrotada. Não está.
Porque a Al-Qaeda é um modo de pensar, não é um exército. Alimenta-se de dor, de medo, de crueldade – da nossa crueldade e da opressão que nós levamos para lá – e enquanto nós continuarmos a dominar o mundo muçulmano com nossos helicópteros Apache e nossos tanques e nossos Humvees blindados e nossa artilharia e nossas bombas e os ditadores “amigos”... a Al-Qaeda continuará.
Teremos de viver esta loucura até o último dia do regime Bush em Washington? Não haverá sequer uma alma, nesta cidade faustosa, imperial, que entenda o que “nós” estamos fazendo aqui, no Oriente Médio?
Por que, diabos, o The Washington Post cede espaço às fantasias de um funcionário da CIA, a própria organização, ela mesma, que não soube evitar o 11 de setembro porque – se se acredita no que tantos dizem – um telefonema em árabe, que falava de colisão de aviões e torres gêmeas... não foi traduzido a tempo? Vamos bombardear o Iran? É isto o que estamos esperamos que aconteça? Ou esta é outra guerra-simulacro, outra guerra de fantoches, como a guerra Iran-EUA no Líbano, guerreada entre o Hizbóllah e os israelenses? E Mike? Pensa que a Al-Qaeda está no Iran?
Israel continua a construir colônias para judeus – e só para judeus – em terra árabe. E Washington nada faz. Por ilegais que sejam estas colônias, George Bush está com elas. Estas colônias alimentam o ódio e a frustração e um profundo e digno ressentimento – e Washington nada faz para impedir que o ultraje prossiga. Abro cada manhã meus jornais árabes e descubro, a cada dia, novas razões pelas quais os Bin Ladens deste mundo não desaparecerão.
Por exemplo, as notícias que chegam de Gaza, esta semana. Oito estudantes palestinos receberam bolsas do programa Fulbright, para estudar nos EUA. Qualquer um pensaria que seria interessante para os EUA levar estes jovens muçulmanos para conhecerem a terra da liberdade. Mas não. Israel não os autorizou a sair de Gaza. Tudo isto é parte da “guerra ao terror” que Israel diz que luta, ao lado dos EUA. Então, o Departamento de Estado dos EUA cancelou as bolsas. Não, não vale a pena você, leitor, converter-se em homem-bomba da Al-Qaeda, contra tamanha estupidez. Mas dificilmente se encontrará alguma atitude mais mesquinha, mais vergonhosa, mais perversa, mais viciosa, nos jornais de ontem.
Mike Hayden soube disto? Leu? Ou ele, como tantos em Washington, tem tanto medo de Israel, que é incapaz de gritar “bú” para a própria sombra? Será que a CIA percebe – ou desconfia – que enquanto obrigarmos o Oriente Médio a viver sob terrível injustiça, a Al-Qaeda sobreviverá? Por que nossos exércitos – e fizeram-me esta pergunta em Bagdá – estão no Paquistão, no Afeganistão, no Iraque, na Jordânia, na Turquia, no Egito, na Argélia (sim, há uma base de forças especiais dos EUA próxima de Tamanraset), no Bahrain, no Kuwait, no Iêmen, em Oman, na Arábia Saudita, no Catar e no Tajiquistão? (Sim, sim, há pilotos de bombardeiros franceses em Dushanbe, prontos a oferecer “rápido apoio aéreo” aos soldados que estão no Afeganistão.)
Enquanto mantivermos esta cortina de ferro que atravessa o Oriente Médio, estaremos em guerra e a Al-Qaeda guerreará contra nós. Aliás, esta nova cortina de ferro começa na Groenlândia e continua pela Grã-Bretanha e Alemanha, pela Bósnia e Grécia, até a Turquia. Para que serve? O que há do outro lado? A Rússia. A China. A Índia.
São perguntas que não nos perguntamos; sem dúvida, são perguntas que The Washington Post não se atreveria a fazer a Mike e aos seus íntimos da CIA. Sim, cantamos e recantamos a democracia e a liberdade e os direitos humanos, mas jamais oferecemos suficiente democracia, suficiente liberdade e suficientes direitos humanos ao mundo muçulmano. A liberdade que eles almejam é a liberdade que os livre DE NÓS. Enquanto não a obtiverem, lá continuarão a brotar frutos amargos, como a Al-Qaeda. E quanto a eles livrarem-se DE NÓS, aí está uma liberdade que, temo muito, não estamos pensando em dar-lhes.
Mike Hayman que diga que o mundo muçulmano estaria “rejeitando” a “forma de Islam” da Al-Qaeda. Não acredito. Duvido muito. Parece-me, isto sim, que Al-Qaeda está cada dia mais forte. Mike que diga que a Al-Qaeda está derrotada no Iraque e na Arábia Saudita. Mas... está derrotada em Londres? Em Bali? E em Nova Iorque e Washington?