FONTE: Folha de S.Paulo, 5 de setembro de 2012.
Uma esquerda equivocada
Marcia Camargos e Aldo Cordeiro Saúda
Quando milicianos leais a Bashar Assad, sob o comando do exercito sírio,
invadiram o vilarejo de Houla, em 28 de maio, Muawiya Saayed mandou as
mulheres e crianças refugiarem-se no vizinho.
Sua esposa ficou escondida entre as plantas do jardim. De lá, ouviu os
gritos do marido e do filho mais velho sendo torturados e executados
pelas forças de Bashar.
Na correria para fugir, ficou para trás a caçula, de 8 anos. Pouco
depois, o corpo da pequena Sara viria somar-se a outros 107 computados,
na aldeia, por observadores da ONU.
Quase tão chocante como episódios desta natureza tem sido a atitude de
algumas figuras emblemáticas do continente sul-americano diante da
situação.
No Brasil, parte significativa da esquerda, incluindo intelectuais,
dirigentes de sindicatos e movimentos sociais, partidos e deputados
comprometidos com a luta contra a violência de Estado, além de velhos
combatentes à ditadura militar verde-amarela, apoiam um regime cuja
brutalidade cresce de maneira assustadora.
Alegando que Bashar seria anti-imperialista e, portanto, preferível à
"turma da Otan e seus asseclas regionais", eles fecham os olhos para um
dos mais atrozes crimes contra a humanidade do século 21.
Não há dúvida de que a revolução síria, iniciada de forma pacífica há 18
meses, tem acumulado contradições intrínsecas ao processo e exacerbado
divisões sectárias entre alauítas, sunitas e cristãos.
Mas, ao negar solidariedade aos oprimidos, essas esquerdas desprezam os
princípios fundamentais da cartilha marxista. Pior: fazem coro aos
inaceitáveis comentários vindos de Caracas, onde Hugo Chávez chamou
Assad de "líder árabe socialista, humanista, irmão, com uma grande
sensibilidade".
Ignorando o caráter de massas da oposição, o chefe bolivariano descreveu
seu "companheiro" como vitima de um complô norte-americano para
desalojá-lo do poder.
Ora, nem a realpolitik absolve tais palavras.
A ideia de Assad como inimigo dos ianques não tem lastro histórico.
Segundo documentos revelados pelo site WikiLeaks, o governo de Damasco
não só praticou tortura terceirizada a mando da CIA como possuía, até
muito pouco tempo atrás, relações estreitíssimas com a referida agência.
Verdade seja dita, a amizade entre a Casa Branca e a família Assad vem
de longe. O pai, de quem Bashar herdou o trono de presidente,
prontamente integrou a coalizão liderada por Bush pai, em 1992, para
invadir o Iraque. Em 1976, quando a Síria ocupou o Líbano com o objetivo
de derrotar o movimento nacional palestino, os Assad contaram com o
respaldo direto de Washington e Tel Aviv. Não por acaso, os Estados
Unidos se preocupam menos com a contingência de Assad possuir armas
químicas do que com a possibilidade delas saírem de suas confiáveis
mãos.
Buscando justificar o injustificável, sob a defesa de uma suposta
soberania nacional, os ditos anti-imperialistas fingem não ver as bases
militares russas nas praias da Síria, por onde circulam bilhões de
dólares em máquinas de matar enviadas por Moscou.
Outros citam a presença de integrantes da Al Qaeda no confronto armado.
Reproduzem, de maneira fiel, os argumentos utilizados por Washington na
sua tentativa de desqualificar a resistência iraquiana.
E vão além. Ao apresentarem Bashar como herói antissionista, esquecem
que sob seu governo as fronteiras do país foram as mais seguras para
Israel, que tinha como líquida e certa a posse definitiva das Colinas de
Golã.
Por sorte, enquanto setores da esquerda encenam um papel lamentável, o povo sírio prossegue com heroísmo na sua luta desigual.